25 MAIO MARIA HELENA SAPAROLLI – CONTINENTES, CONTEÚDOS

Maria Helena Saparolli é ceramista – a cerâmica, segundo ela, é sua linguagem principal, embora também possua trabalhos com outros materiais como o vidro e o bronze.

Uma informação me foi dada por ela ao inicio do encontro: a cerâmica é Yin e o vidro, Yang. Me rendi, por um breve instante, a buscar na internet alguma informação básica a respeito de taoísmo. Descubro que yin e yang representam dualidade, o que pressupõe complemento. Leio em alguma Wikipedia da vida que, sem qualquer julgamento de importância ou valor, o yin é o princípio feminino, a passividade, a absorção. Já o yang, mais masculino, a atividade. Arrisco numa interpretação simplista compreender que, se nada existe em estado puro, Maria Helena e a cerâmica são complementos que ao atingirem seus extremos manifestam a semente de seu oposto. Vale dar uma olhadinha no tai-chi-tu, um conhecido desenho representativo para adiante no texto localizar (ou misturar por completo) a artista, a cerâmica e as sementes.

O histórico de trabalhos da Mari é extenso. Lecionou no Ateliê de Escultura do Centro de Criatividade – Fundação Cultural de Curitiba durante muitos anos e até se aposentar. Junto ao amigo Elvo Damos cuidou do restauro de painéis de Poty. Trabalhou nos azulejos do MON – cujo tom de amarelo, segundo ela, foi o Niemayer mesmo quem escolheu.

Fomos apresentadas numa segunda feira à noite, por uma amiga em comum. Nosso encontro foi, dias depois, agendado também para uma segunda feira, no mesmo horário. Na ocasião fomos até ela eu e Paulo, como de costume, mas dessa vez acompanhados por uma faringite que resolveu me atacar na sexta feira anterior.

Minha quase ausência de voz pareceu um problema… O prenúncio de querer perguntar e comentar muita coisa e, no esforço da garganta danada, ter de me limitar a algumas intervenções. Logo no início, entretanto, a Mari (como nos habituamos a chamá-la em cópia ao modo íntimo da amiga Luciá) comentou sobre a necessidade que todo ceramista tem de respeitar e de lidar com o comportamento do material, a argila. Quando a secagem acontece rápido demais, por exemplo, o objeto pode trincar. Segundo ela, o material conta o que quer.

Percebi então que a artista entendia do meu sentimento, daquela coisa de ter que fazer caber o desejo dentro das margens do suporte material, modulando sempre a própria voz para o copo (ou o corpo!) não trincar. Pensei frases mais curtas para me expressar e, sem prejuízo, consegui participar satisfatoriamente do encontro. Dei o tempo para minha secagem, rouquidão.

Obrigada, Mari, pelo ensinamento, pelo chá, e pela dica quanto ao escalda-pés – quanto a este último, no decorrer desse texto a tua inclinação às altas temperaturas fará mesmo todo sentido.

Enfim, o ateliê de Maria Helena Saparolli é um lugar de misturas e evoluções. No piso situado ao nível da rua, porta de entrada, ficam algumas das obras prontas. Dos pratos e xícaras, às instalações suspensas. Mas há um processo que antecede o resultado de toda essa beleza acabada e ele acontece, coincidentemente ou não, no andar de baixo, como viesse sempre do sub-solo a matéria que emerge como obra prima.

 

O ateliê também dá ares de laboratório: lá acontece muita pesquisa e experimentação, relacionadas não apenas à argila, mas aos esmaltes e outros processo. Uma artista com certa pinta de cientista. A arte da cerâmica se mistura com o domínio da química. E não sei se química ou alquimia, propriamente. Química, talvez, apenas no sentido da interação Maria Helena e cerâmica; no entrosamento, pois não há fenômenos e processos ali submetidos a uma lei, senão a um componente, a arte. Alquimia, talvez, naquele sentido pelo qual metais se transformam em ouro – a artista não transforma argila em cerâmica? Esse fazer transformador ao qual Maria Helena está tão ligada, conta com um outro elemento – o forno.

A medida da possibilidade criativa é o tamanho do forno – algumas peças devem ser produzidas em módulos para serem queimadas. Antes de passar por ele, a argila sofre a secagem, mas ainda não é cerâmica. As partículas de água existentes no material se alteram e nesse processo de transmutação a plasticidade é perdida irreversivelmente.

Essa transmutação acontece de maneira invisível aos olhos sob altíssima, embora variável, temperatura. Uma vez mais, o exercício da paciência. Como um vôo com duração de longas horas para terras distantes, o ingresso de uma peça ao forno é um percurso que não se interrompe – é apenas ao final do cruzeiro que se chega ao destino, nesse caso, resultado. Quem fica do lado de fora não sabe o que há com àqueles que fazem a viagem, mas sabe que a estrutura metálica, aeronave ou forno, guarda um conteúdo de vida.

Saídas dessa experiência transformadora, as peças contam algo, à sua linguagem tátil e visual. Ainda que a artista se esforce para prever o resultado que determinados esmaltes cores e argilas terão ao serem submetidos a determinados fornos e temperaturas, o processo em seus detalhes foge ao controle. A cor efetiva da peças, a quantidade de retração (redução de tamanho) sofrida – tudo isso guarda certo mistério. Às vezes, alguma peça pode mesmo chegar a explodir!

É difícil ouvir a história da argila covertendo-se em cerâmica sem pensar na metáfora que ela pode representar. Não penso algo como a metáfora da lagarta transformada em borboleta, já que nesse caso não temos um ciclo de vida pré determinado ou naturalmente evolutivo.

Tento moldar (com minhas palavras), uma representação possível: Dentro do forno todas as peças são argila, mas cada peça é única. Haverá um momento crucial no qual uma certa passagem de estado será feita, incontrolável, por maior seja o desejo do artista de que tudo corra exatamente conforme o esperado. Bem, quantas vezes na vida, ou quantos de nós na vida, somos argila dentro do forno ou eterna argila exposta crua ao tempo, a acontecimentos que nos moldem constantemente…

Alguns de nós não decidem nunca uma forma (ou fôrma) a qual assumir. Outros, desde cedo, submetem-se à queima que os torna mais sólidos, determinados, decididos, porém impermeáveis. Há também os que de não aquietar-se argila nem prestar-se aos limites fixos de um corpo, submetem-se ao forno e dentro dele explodem – esses são os mais sensíveis, que fazem-se caco, ao pensar talvez que, como disse Quintana, os espelhos partidos tem muito mais luas. Ao fazer-se estilhaço reforçam as vantagens de ser argila, assim como a coragem necessária ao risco de ser, um dia, cerâmica – rija porém frágil às quedas.

Falando em corpos, os que caem, lembro-me também daqueles que se erguem. Maria Helena dá muito valor ao gesto e movimento do fazer porque nele as ideias ganham um corpo. Para além das metáforas possíveis, a argila é literalmente um material dos mais interessantes. O ponto de “basta, vamos ao forno” deve ser dado pelo artista – caso contrário, é só misturar água e a argila seca volta a ser maleável. O ceramista não vive apenas de paciência e fazer, mas de decisão. E de conformação também. Afinal, depois do forno já não existe possibilidade de deixar de ser vaso para ser instalação, flor, rolinho. Essa conformação a um resultado não é, entretanto, conformismo. Embora continue-se a buscar por aquilo que a criatividade vislumbrou e quis, os chamados “erros” podem ser acolhidos como uma surpresa – o bom do acaso.

Daí porque, talvez, Maria Helena aposte no relativo. O relativo está muito presente em seu trabalho pela ausência de receio na repetição de alguns elementos. Para a artista, para além da diferença entre os indiscutivelmente diferentes, é interessante buscar a sutil diferença entre os iguais – nesse caso a aparente repetição é ainda mais relativa. Não é preciso que o olhar do outro aprove sempre essa escolha já que à fruição da obra por outrem antecede a verdade do artista e, portanto, a honestidade da relação entre o artista e a própria obra – um entendimento do seu querer. Sobre a questão do querer, Maria Helena ensina relatividade por uma nova via: Nem sempre o olhar do outro compreende o nosso querer e é preciso lidar com essa falta, assim como o ceramista lida com outras perdas, nesse caso, das próprias peças, a ensinar também o desapego.

A questão do desapego, contudo, não quer dizer ausência de vínculo. Maria Helena fez a marca do vínculo ao nos falar sobre a presença das sementes em sua obra. Essas marca, feita também com a semente na argila. A semente marca a argila e se eterniza nela, embora não precise brotar e crescer ali para tanto. Pela ressignificação, a qual fazemos o tempo todo, o gesto efêmero do marcar (retorna aqui importância do fazer) é uma espécie de raio X, a silhueta da semente que, uma vez decalque, pode ser ampliada, reproduzida, transformada. A semente tem a carga – Maria Helena a toma para si, devolvendo-a broto, germinação, planta; num estado que é ainda natureza, por mais que as sementes, por vezes, fiquem irreconhecíveis. Algumas transformações, vemos, antecedem – ou dispensam – o forno; acontecem ainda argila, sutil, criativa.

Maria Helena é uma boa colecionadora. Na cadeira que desenvolveu para uma exposição no MON o balanço cerâmico era formado por cartas, ou seja, palavras, destinos, lembranças. Registros, como os poemas apresentados em uma de suas exposições, “Poemas em pratos limpos”. Poemas como os de Pessoa que, feitos lembrança, foram entregues a nós impressos em vidro.

Sementes são inicio, meio e fim. Dentre tantas coleções, a principal de Maria Helena parece mesmo ter a ver com sementes. Pode ser aquela plantada nela pelo pai, bom desenhista, que guardava numa garagem os seus aeromodelos a apresentar o tridimensional. Pode ser aquela plantada pela técnica, a qual aprendida e aprimorada torna-se ferramenta de crescimento – e liberdade. Liberdade. Os pássaros que vivem na região na qual está localizado o ateliê invadem-no sem maior cerimônia, confiantes a despeito das janelas à primeira vista formadoras de uma gigante gaiola branca. Confiante como um desses passarinhos Mari está sempre coletando sementes, fazendo-as germinar lindamente sem saber e – merecidamente – mordendo bons frutos.

Foto: Paulo Andrade
Verbo: Andressa Barichello
Fotografada: Maria Helena Saparolli
Agradecimento:Luciá Consalter

Publicado em 05/06/2015, por Andressa Barichello (Fotoverbe-se)